quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Resumão do Corinthians na New Yorker

Foto de abertura da matéria da New Yorker


Se eu tivesse julgado o que saiu na edição de 13 de Janeiro New Yorker sobre o Corinthians pelo que foi publicado na imprensa brasileira teria achado que se tratava apenas de uma debochada nota, e que uma das principais partes da nota fazia referência ao time ser mais ou menos como uma casa de prostituição. 

Mas como desconfio que um naco da nossa grande mídia está a serviço de seus próprios interesses e preconceitos, e que eles muitas vezes se chocam com a notícia, fui atrás da tal edição e quase caí do sofá quando vi que se tratava de uma matéria bastante séria de 14 páginas e não de uma nota debochada.

Então, em tradução tão livre quanto este espaço, e editada também livremente, faço aqui um resumo do texto, mas adianto que se a ideia era 'sensacionalizar' e polemizar, cravar o olho no trechinho tosco da casa de prostituição acabou deixando passar outras boas oportunidades: o texto é cheio delas.

Tudo começa com a história do Maracanazo. O autor, Ben McGrath, explica que o tal complexo de vira-lata (ele cita Nelson Rodrigues, obviamente) ficou para trás, que o Brasil hoje vive um boom econômico, que a classe média aumentou muito, fala do primeiro jogo da Copa (Brasil e Croácia), e diz que ele será disputado no Itaquerão. Nessa hora, o Corinthians entra em cena.

Depois de associar o time ao proletariado, o repórter diz também que os torcedores do Corinthians são considerados “thuggish” (em tradução livre, “meio violentos”) e fala do telão digital do Itaquerão (“duas vezes mais brilhante do que o da Allianz Arena em Munique, e, dizem, pode ser visto a 70 quilômetros de distância em uma noite clara”). E então apresenta Andrés Sanchez ao leitor no trecho: “Sanchez gosta de dizer que o Corinthians mudou o jeito como o futebol brasileiro pensa, e entre cigarros, que ele ia jogando no chão fumados pela metade, diz com convicção que agora a história está a seu lado: “Vamos passar facilmente os times europeus, e seremos os maiores campeões do mundo”.

O texto fala do corintianismo de Lula e das recentes manifestações sociais nas ruas do Brasil. Em seguida, o repórter explica que pelo menos o Itaquerão sediará jogos de um grande time, mas pergunta o que acontecerá nos novíssimos estádios de Brasília (“cidade cujo maior time joga a série D”) e de Manaus. “No Brasil a gente sempre acha que vai haver um milagre”, diz PVC, que no texto é comparado ao comentarista americano Bob Costas, também bastante tático. “Dessa vez não haverá milagre”, completa PVC.

Em seguida vem Romário, que é comparado a uma figura tipo Derek Jetter (ídolo do New York Yankees), mas que se vê mais como Muhammad Ali. Romário diz ao repórter que o Brasil vai sediar uma Copa, mas que ela não é para o povo brasileiro. “As classes mais baixas não terão dinheiro para comprar ingresso”.

Para explicar ao leitor americano por que o futebol brasileiro é diferente, ou se acha diferente, o repórter cita nossa histórica criatividade, Pelé e Garrinha, e diz que o drible talvez tenha sido criado quando jogadores negros, na tentativa de não trombar com brancos numa época em que até um choque acidental poderia ser considerado ofensivo, deram um jeito de passar por eles sem resvalar. Mas ele logo explica que esse futebol-samba é mais uma das vítimas da globalização. “O brasileiro aprendeu a ser tecnocrata e o europeu a ser artista”, diz Tostão, sugerindo (mui acertadamente, na minha humildezinha opinião) que se o repórter quer ver jogo bonito, deve ir a Barcelona ou a Manchester.

A matéria então se aprofunda em Corinthians. Primeiro, contando a história da conquista do título mundial em 2012 e o orgulho do torcedor ao exibir o “the favela is here” do outro lado do mundo. Faz um paralelo entre o sucesso do time durante uma década na qual milhões e milhões de cidadãos brasileiros foram tirados da pobreza, ajudando a fazer das lojas que vendem produtos Corinthians o ponto de varejo que mais cresceu no Brasil. E usa isso como porta de entrada para mostrar como Sanchez e Luis Paulo Rosenberg reiventaram a forma como o brasileiro consome futebol.

Conta ter ido a casa de Rosenberg, num luxuoso reduto judaico em São Paulo (Higienópolis), explica como um economista entrou em cena no futebol brasileiro falando do encontro entre Sanchez e Rosenberg (“O [Andrés] me disse: ‘eu sei administrar um clube de futebol, mas não tenho ideia como fazer para ganhar dinheiro com ele, então você vem e faz o que tiver que fazer’). E então, entre parenteses, vem a parte destacada pela imprensa brasileira, na qual Rosenberg diz que dirigir o Cotinthians tem que ser comparado a dirigir uma casa de prostituição: “O que mais você pode pedir a Deus”, completa.

O texto segue e fala da acusação de lavagem de dinheiro em 2007, da ligação com o russo Boris Berezovsky e explica como Sanchez deu a volta por cima. Primeiro, cita a vinda de Ronaldo (“Ronaldo introduziu glamur. Celebridades como Hugh Jackman e membros do Coldpay começaram a aparecer no estádio usando a camisa preto e branca do Corinthians”). Em seguida, explica que o Corinthians é o maior contrato da Nike na América Latina e diz que a lealdade do corintiano é tanta que 30 mil corintianos foram ao Japão em 2012. “O Corinthians diz ter tantos torcedores quanto o Canadá tem população, 35 milhões”, segue o texto.

Fala então de Zizao, e da estratégia bolada por Rosenberg de trazê-lo a fim de conquistar o mercado asiático. E abre aspas para Rosenberg: “Mas aí o bastardo do técnico diz que isso é interferência, que ele não é bom jogador e coloca o cara no banco! Então usei o cara para atividades sociais – para levar presentes para criancas em hospitais”.

A deixa leva o texto para as ações sociais praticadas pelo time: desde ajudar vítimas do Tsunami no Japão, passando por doar dinheiro para combater obesidade infantil e síndrome de down até plantar árvores para gols marcados. “Eventualmente, o time ganhava tanto que poderia ter solicitado a chancela de “o primeiro time do mundo a neutralizar o carbono”, diz o autor.

Ele então explica sobre Itaquera, fala da distância para o centro da cidade e pergunta a Rosenberg se o Itaquerão não foi construído muito “longe do dinheiro”. “Essa é uma pergunta que me tira o sono”, diz Rosenberg.

O texto segue e em vários parágrafos e muitos detalhes conta a história da fundação do time, fala dos 24 anos sem título, de como a torcida cresceu nesse período e incorporou uma certa atitude de “nobre sofrimento”, da invasão do Maracanã em 1976 e sobre como alguns historiadores a consideram o maior deslocamento humano em época de paz.

Juca Kfouri diz que o o time adquiriu relevância nacional, e até global, na década de 80 ao se posicionar contra a ditadura. É a oportunidade para falar do “marxista” Sócrates, de Wladimir, de Casagrande, e da democracia corintiana. “Os jogadores não eram apenas hippies; eram guerreiros culturais – pop stars até, que apareceram no palco em show de Rita Lee”, diz o repórter. “E como revolucionários o Corinthians foi bi-campeão paulista em 82 e 83”. Ele depois conta que hoje uma placa de bronze saúda os jogadores na saída do vestiário para o campo de treino: “Nada se compara ao Corinthians nessa terra chamada Brasil”.

O texto conta sobre a punição recebida pelo time no ano passado, tendo que jogar em estádios pequenos (o repórter foi a Mogi Mirim com Rosenberg e seu filho ver um jogo), fala da tragédia em Oruro e de como as coisas mudaram depois disso. Na saída do estádio em Mogi, Rosenberg diz ao repórter que o torcedor corintiano é considerado o mais feio e que “infelizmente” é isso mesmo.

O autor fala um pouco do jogo que viu, diz que foi sofrível e que, por decência, Rosenberg se recusou a traduzir o que cantava a torcida. Conta então que Rosenberg é cético em relação a tirarem as grades que separam o torcedor do campo durante a Copa do Mundo, diz que o executivo não sabe se o brasileiro está pronto para isso. “É muito arriscado”, diz o economista.

Nessa hora entra em campo meu amigo Mauricio Savarese, jornalista, que diz ao repórter que a cultura futebolística brasileira é menos violenta do que a argentina, e
que os problemas de corrupção no Brasil não chegavam perto dos da Russia, onde 50 bilhões de dólares já foram queimados na preparação para a Olimpíada de Inverno.

O texto segue falando do Bom Senso, dos multi talentos de Paulo André, do selinho de Sheik. Conta que Sanchez pediu para o repórter ir perguntar a Paulo André se ele é pintor, escritor, cineasta, intelectual ou jogador de futebol. “Porque alguma coisa me diz que ele não pode ser tudo”, disse Sanchez.

E então, a caminho de um São Paulo e Corinthians no Morumbi, a namorada do filho de Rosenberg diz ao repórter que ele vai entender por que está cobrindo o time errado: “Você vai ver [no Morumbi] pessoas bonitas, com dentes e alfabetizadas”. 

O repórter se sente compelido a explicar: “Ela estava se referindo aos torcedores do São Paulo, o time da elite”. Ele viu o primeiro tempo em um camarote, não gostou do lugar e diz ter entendido rapidamente porque a Copa do Mundo não seria realizada naquele estádio. Em seguida, fala do apelido de Bambi e testemunha uma briga entre as torcidas. Ele então fala das organizadas e de como são consideradas violentas. Tostão volta para dizer que os times dão ingressos gratuitos para as organizadas e o risco é o de só esses caras irem aos jogos.

Rosenberg explica que é preciso entender que o Corinthians é 90% da vida desses caras e conta a história das estrelas na camisa. Diz que com as seguidas conquistas o time começou a colocar estrelas na camisa, e que um membro da Gaviões chegou para ele e disse que era para ele parar com as estrelas. Rosenberg não acreditou e quis saber do que o cara estava falando. “Nosso escudo tem espaço fixo na camisa, então quanto mais ganharmos, mais estrelas e menor nosso escudo. Não vou ao estádio para ver estrelas”. Rosengerg concordou e tirou as estrelas. 

O repórter conta que foi a um bar ver um jogo com a Gaviões, que testemunhou seu anfitrião atirar o celular no chão quando o adversário fez um gol e fala sobre como Sanchez teve participação na demissão de Tite. “Sanchez deu um conselho a Mario Gobbi: ‘Futebol sulamericano é um negócio complicado. Se você não está enfiando uma barra na bunda de alguém todos os dias, então é hora de mudar’”, e completou dizendo que Sanchez esperava um telefonema de Lula a qualquer momento, dando a entender que o ex-presidente reclamaria do time.

Rosenberg leva o repórter para ver Itaquerão e diz que não vai caber nem mosquito de tão cheio que o estádio ficará. E o texto termina falando do acidente que resultou na morte de dois trabalhadores no estádio, diz que um deles estava trabalhando há 18 dias sem folga e que, no acidente, o telão foi danificado.


A matéria é histórica não apenas pelo tamanho(14 páginas), nem porque é a primeira vez que um time de futebol tem esse peso numa edição da New Yorker (não achei outra matéria como essa nos arquivos), mas porque trata-se de uma das revistas mais antigas e renomadas do mundo, lançada em 1925, e para a qual já escreveram autores como John Cheever, Alice Munro, Haruki Murakami, Vladimir Nabokov, Philip Roth, J.D Salinger e John Updike.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

A cláusula 12

Nova York, 3 de janeiro de 2014

Esquina da ruas Spring e Lafayette, Soho, Nova York, 3 de janeiro de 2014, 10h.


Na sexta, enquanto tomava meu café da manhã no lugar de sempre, fiz o de sempre, que é ler o jornal entre uma colherada do iogurte que vem servido com mel, grapefruit e granola – aliás, o melhor de Nova York (eu obviamente não conheço todos os iogurtes com granola da cidade, mas elegi esse como melhor e, para que ele não perca o posto porque já me apeguei completamente, decidi não conhecer mais nenhum). Gosto de dias que começam dentro da rotina porque eles oferecem a ilusão de que tudo está sob controle. 

Lá fora, a tempestade de neve insistia em cair. Menos dezenove graus, dizia meu aplicativo no Iphone. Eu nunca tinha sentido um frio como esse antes e, a despeito da recomendação materna para eu não sair de casa, decidi que iria a aula de yoga e tentaria fazer com que aquele três de janeiro começasse da forma mais ordinária possível. Então, vesti todos os casacos do armário, gorro, dois cachecois, uma bota de astronauta e saí a pé. Em segundos descobri que, por estar apenas com uma calça (ao contrário de meias, casacos e jaquetas, calças não são elementos empilháveis) minhas pernas tinham virado pedras de gelo. 

Foi assim que me vi obrigada a ir correndo para a yoga - que não fica suficientemente distante para justificar o taxi, nem tão perto para que eu vá correndo confortavelmente - uma cena que aos olhos dos poucos que ousaram sair de casa naquela manhã deve ter sido ridícula. No meu imaginário eu corria como Bolt, mas tenho noção da imagem real: uma mulher super-vestida em camadas de casacos rompendo pelas ruas em câmera lenta com botas de astronauta. Quando cheguei à academia e vi a escola fechada (eles tinham mandado um email na noite anterior explicando que por causa da nevasca não estariam abertos, mas como uma de minhas resoluções de ano novo foi a de usar menos a internet eu não havia visto a droga do email) percebi que o destino tentava matar de frio o ritmo de meu cotidiano. 

Disposta a recuperar a rotina perdida, fui tomar o café da manhã no lugar de sempre. E foi devidamente aquecida e entre colheradas do yogurte que li uma história emocionante e singela, como são mesmo as histórias mais emocionantes. Ela é a seguinte: 

Will Blythe foi demitido recentemente. Trabalhava para uma editora digital Americana chamada Byliner. Como parte do processo de demissão, teria que assinar um documento, espécie de carta de acordo entre a empresa e ele, uma dessas peças que pretende respaldar legalmente a empresa contra futuros processos trabalhistas. Até aí, nada de anormal. Entre as cláusulas, uma dizia que ele não entraria com reclamações, outra que ele devolveria objetos que fossem da empresa e estivessem sendo usados para o exercício da profissão, outra dizendo que ele poderia manter os presentes de Natal que já havia ganho até hoje – um Ipad entre eles – etc e tal. Blythe estava pronto para assinar quando chegou a uma certa cláusula 12. 

A cláusula 12 dizia que ele concordava em nunca dar declarações negativas ou depreciativas, faladas ou escritas, em relação a Byliner, incluindo seus acionistas, diretores, funcionários, produtos e práticas de negócio. Caso ele não assinasse o documento, não receberia o dinheiro da demissão, no valor de duas semanas de trabalho. Blythe disse a seu superior que não gostaria de assinar nada com aquela cláusula e a notícia rapidamente chegou à cúpula. Ele então foi informado que se tratava de uma cláusula normal, que todos assinam no meio, e que a empresa estava disposta a dar a ele reciprocidade: se ele não falasse nada de ruim sobre a Byliner, a Byliner não falaria nada de ruim sobre ele. Will Blythe começou a refletir. De fato, se todos assinam, por que não eu? E ele não tinha uma agenda contra a empresa, não pretendia mesmo sair denegrindo o ex-empregador por aí. Talvez não houvesse nada de mais em assinar, pensou, mas alguma coisa ainda o encucava. 

E então ele entendeu que assinar um documento com aquela cláusula teria, como ele coloca no texto que fez para o New York Times, efeito paralisante sobre a disseminação da verdade. “Que uma empresa estivesse disposta a oferecer dinheiro pelo meu silêncio é dessas coisas que já vi em muitos filmes de mafia”, escreveu. No texto, ele diz que não pensa em menosprezar a empresa que o empregou, mas que preferia se sentir livre para criticar, atacar ou exorcizar se assim bem entendesse. “Quero dizer a verdade, mesmo que ela não seja bela”. E termina: “Por isso não assinei a cláusula 12. A Byliner pode ficar com o dinheiro. Eu fico com minha dignidade”. 

A vida vai oferecendo chances para que sejamos Will Blythes, e elas normalmente chegam, sem alarde, no meio de uma quarta-feira qualquer, sensualmente disfarçadas e misturadas a muitos outros deveres e tarefas e obrigações. O diabo é que, mesmo quando nos damos conta da oportunidade, acabamos deixando que o sistema nos violente moralmente em troca de um dinheiro que é sempre necessário e bem-vindo. E assim mandamos mais uma pá de cal sobre a verdade, para deleite das corporações que hoje ditam as regras desse jogo; e ditarão para sempre a menos que ousemos ser como o tal Blythe. E a verdade com V maiúsculo é que a difícil escolha do caminho correto é sempre aquela que nos leva aos lugares mais ricos.