Nova York, 3
de janeiro de 2014
Esquina da ruas Spring e Lafayette, Soho, Nova York, 3 de janeiro de 2014, 10h. |
Na sexta,
enquanto tomava meu café da manhã no lugar de sempre, fiz o de sempre, que é
ler o jornal entre uma colherada do iogurte que vem servido com mel, grapefruit e granola – aliás, o
melhor de Nova York (eu obviamente não conheço todos os iogurtes com granola da
cidade, mas elegi esse como melhor e, para que ele não perca o
posto porque já me apeguei completamente, decidi não conhecer mais nenhum). Gosto de
dias que começam dentro da rotina porque eles oferecem a ilusão de que tudo
está sob controle.
Lá fora, a tempestade de neve insistia em cair. Menos
dezenove graus, dizia meu aplicativo no Iphone. Eu nunca tinha sentido um frio
como esse antes e, a despeito da recomendação materna para eu não sair de casa,
decidi que iria a aula de yoga e tentaria fazer com que aquele três de janeiro começasse
da forma mais ordinária possível. Então, vesti todos os casacos do armário,
gorro, dois cachecois, uma bota de astronauta e saí a pé. Em segundos descobri
que, por estar apenas com uma calça (ao contrário de meias, casacos e jaquetas,
calças não são elementos empilháveis) minhas pernas tinham virado pedras de
gelo.
Foi assim que me vi obrigada a ir correndo para a yoga - que não fica suficientemente distante para justificar o taxi, nem tão perto para que eu vá correndo confortavelmente - uma cena que aos olhos dos
poucos que ousaram sair de casa naquela manhã deve ter sido ridícula. No meu imaginário eu
corria como Bolt, mas tenho noção da imagem real: uma mulher super-vestida em
camadas de casacos rompendo pelas ruas em câmera lenta com botas de astronauta. Quando cheguei à
academia e vi a escola fechada (eles tinham mandado um email na noite anterior
explicando que por causa da nevasca não estariam abertos, mas como uma de
minhas resoluções de ano novo foi a de usar menos a internet eu não havia
visto a droga do email) percebi que o destino tentava matar de frio o ritmo de meu cotidiano.
Disposta a recuperar a rotina perdida, fui tomar o café
da manhã no lugar de sempre. E foi devidamente aquecida e entre colheradas do yogurte que li uma história emocionante e singela, como são mesmo as
histórias mais emocionantes. Ela é a seguinte:
Will Blythe foi demitido
recentemente. Trabalhava para uma editora digital Americana chamada Byliner. Como
parte do processo de demissão, teria que assinar um documento, espécie de carta
de acordo entre a empresa e ele, uma dessas peças que pretende respaldar
legalmente a empresa contra futuros processos trabalhistas. Até aí, nada de
anormal. Entre as cláusulas, uma dizia que ele não entraria com reclamações,
outra que ele devolveria objetos que fossem da empresa e estivessem sendo
usados para o exercício da profissão, outra dizendo que ele poderia manter os
presentes de Natal que já havia ganho até hoje – um Ipad entre eles – etc e
tal. Blythe estava pronto para assinar quando chegou a uma certa cláusula 12.
A cláusula 12 dizia que ele concordava em nunca dar declarações negativas ou depreciativas, faladas ou escritas, em relação a Byliner, incluindo seus acionistas, diretores, funcionários, produtos e práticas de negócio. Caso ele não assinasse o documento, não receberia o dinheiro da demissão, no valor de duas semanas de trabalho. Blythe disse a seu superior que não gostaria de assinar nada com aquela cláusula e a notícia rapidamente chegou à cúpula. Ele então foi informado que se tratava de uma cláusula normal, que todos assinam no meio, e que a empresa estava disposta a dar a ele reciprocidade: se ele não falasse nada de ruim sobre a Byliner, a Byliner não falaria nada de ruim sobre ele. Will Blythe começou a refletir. De fato, se todos assinam, por que não eu? E ele não tinha uma agenda contra a empresa, não pretendia mesmo sair denegrindo o ex-empregador por aí. Talvez não houvesse nada de mais em assinar, pensou, mas alguma coisa ainda o encucava.
E então ele entendeu que assinar um documento com aquela cláusula teria, como ele coloca no texto que fez para o New York Times, efeito paralisante sobre a disseminação da verdade. “Que uma empresa estivesse disposta a oferecer dinheiro pelo meu silêncio é dessas coisas que já vi em muitos filmes de mafia”, escreveu. No texto, ele diz que não pensa em menosprezar a empresa que o empregou, mas que preferia se sentir livre para criticar, atacar ou exorcizar se assim bem entendesse. “Quero dizer a verdade, mesmo que ela não seja bela”. E termina: “Por isso não assinei a cláusula 12. A Byliner pode ficar com o dinheiro. Eu fico com minha dignidade”.
A vida vai oferecendo chances para que sejamos Will Blythes, e elas normalmente chegam, sem alarde, no meio de uma quarta-feira qualquer, sensualmente disfarçadas e misturadas a muitos outros deveres e tarefas e obrigações. O diabo é que, mesmo quando nos damos conta da oportunidade, acabamos deixando que o sistema nos violente moralmente em troca de um dinheiro que é sempre necessário e bem-vindo. E assim mandamos mais uma pá de cal sobre a verdade, para deleite das corporações que hoje ditam as regras desse jogo; e ditarão para sempre a menos que ousemos ser como o tal Blythe. E a verdade com V maiúsculo é que a difícil escolha do caminho correto é sempre aquela que nos leva aos lugares mais ricos.
A cláusula 12 dizia que ele concordava em nunca dar declarações negativas ou depreciativas, faladas ou escritas, em relação a Byliner, incluindo seus acionistas, diretores, funcionários, produtos e práticas de negócio. Caso ele não assinasse o documento, não receberia o dinheiro da demissão, no valor de duas semanas de trabalho. Blythe disse a seu superior que não gostaria de assinar nada com aquela cláusula e a notícia rapidamente chegou à cúpula. Ele então foi informado que se tratava de uma cláusula normal, que todos assinam no meio, e que a empresa estava disposta a dar a ele reciprocidade: se ele não falasse nada de ruim sobre a Byliner, a Byliner não falaria nada de ruim sobre ele. Will Blythe começou a refletir. De fato, se todos assinam, por que não eu? E ele não tinha uma agenda contra a empresa, não pretendia mesmo sair denegrindo o ex-empregador por aí. Talvez não houvesse nada de mais em assinar, pensou, mas alguma coisa ainda o encucava.
E então ele entendeu que assinar um documento com aquela cláusula teria, como ele coloca no texto que fez para o New York Times, efeito paralisante sobre a disseminação da verdade. “Que uma empresa estivesse disposta a oferecer dinheiro pelo meu silêncio é dessas coisas que já vi em muitos filmes de mafia”, escreveu. No texto, ele diz que não pensa em menosprezar a empresa que o empregou, mas que preferia se sentir livre para criticar, atacar ou exorcizar se assim bem entendesse. “Quero dizer a verdade, mesmo que ela não seja bela”. E termina: “Por isso não assinei a cláusula 12. A Byliner pode ficar com o dinheiro. Eu fico com minha dignidade”.
A vida vai oferecendo chances para que sejamos Will Blythes, e elas normalmente chegam, sem alarde, no meio de uma quarta-feira qualquer, sensualmente disfarçadas e misturadas a muitos outros deveres e tarefas e obrigações. O diabo é que, mesmo quando nos damos conta da oportunidade, acabamos deixando que o sistema nos violente moralmente em troca de um dinheiro que é sempre necessário e bem-vindo. E assim mandamos mais uma pá de cal sobre a verdade, para deleite das corporações que hoje ditam as regras desse jogo; e ditarão para sempre a menos que ousemos ser como o tal Blythe. E a verdade com V maiúsculo é que a difícil escolha do caminho correto é sempre aquela que nos leva aos lugares mais ricos.
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